sábado, 7 de junho de 2014

''Saudade é''






Um suspiro.
Não sei do quê. Sei que foi comprido. E alto. E cheio de alguma coisa que não é ar.
Juro que tinha ambulância preenchendo a noite. Um clichê, quando paramos para prestar atenção na cidade. Mas tinha uma ambulância. Alguns cachorros latindo. Carros passando na avenida e aquela moto se esguelando como faz todo final de semana. Até sirene de polícia. Um grilo! – ou dois – pude ouvir quando cortinei os olhos. E quando não tive mais com o que distrair a visão, nada além de uma black paisagem, percebi que era a saudade entrando pelo meu nariz. Eu inspirava saudade.
Um dia, me lembro de doer dela. Ela longe. Ela longe até quando voltava pra cidade. Ela escorregando de mim o tempo todo. A saudade que dá mesmo enquanto ela me encarcerava com palavras. Voláteis, como nasceram para ser. Porém não como eu lido com elas. Engarrafar os dias de uma vida e qualquer pensamento é a desculpa com mais sentido para continuar aqui.
Sentir saudade só do que não é meu.
Saudade que deixa o coração inchado e meio dolorido até. Saudade é cólica cardíaca. Você acha que expirar o que é tóxico dela, depois de consentir sua entrada, vai resolver tudo e você pode dormir normalmente à uma da manhã. Não. Você enruga a cama, suando saudade. Tá tudo confessado no lençol. Saudadumidade. Entregue explicitamente para só eu mesmo saber. E guardar. A saudade é minha. Não preciso dividir com ninguém. Preciso lavar esse lençol e voltar pros grilos e as sirenes. Agora algum carro arrombado pede ajuda. E vai partir sem um bilhete, uma mensagem no celular. Mas pode ser só um dono desligado, que não se atenta que portas abertas convidam sempre alguém para entrar.










Adaptação do texto ''Saudade é'', de Priscila Nicolielo, postado no blog http://priscilanicolielo.com/ .

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sobre o pouco que sobrou dela





 Ele acordou com vontade de fumar. É estranho, geralmente isso nunca acontece. As manchas nas pontas dos dedos denunciam que as noites já costumam ser enfumaçadas, ele não precisa que suas manhãs também sejam. Era uma manhã bonita. Céu azul, sol, era fim de julho, porém inverno. Estava bonito, não estava quente como costumam ser os dias de sol nos trópicos, estava agradável. Não estava agradável o ar em sua volta. Ele não sabia direito qual era a razão. Queria algum significado, pelo menos entender o aperto no peito. Queria um cigarro.

Enrolou um pouco antes de começar sua rotina, que consistia basicamente em encontrar as forças numa xícara de café, tomar banho, vestir qualquer camiseta e sentar diante da tela em branco e rezar para que as palavras cheguem sem doer muito. Nessa enrolada passou os olhos numa rede social de fotos que participa, ainda que seja contra redes sociais virtuais. Só que em vez de fotos, só tinham postado mensagens. Acreditou mais uma vez não pertencer a esse mundo. Lembrou de uma frase de Paulo Francis: “cheguei tarde demais num mundo muito velho”. Algo assim. No meio daquele mar de palavras em vez de imagens que diriam mais do que mil daquelas, citações duvidosas de Clarice, Verissimo, Caio Fernando, Jabor e até do Jô Soares. Não acreditou em nenhuma daquelas frases. Nem sentiu vontade de escrever alguma.

O pescoço doía, mas se sentia mais a fim de ficar ali, com dores no corpo do que atrás de um renovador banho de sol invernal. Talvez ali conseguisse ficar invisível durante um tempo, caso o celular não tocasse. Poderia não atender, depois dizer que estava dirigindo ou no banco, caso cobrassem. Poderia não falar com ninguém, não mandar uma mensagem, nem ler. Nem ler mensagens edificiantes e mentirosas de Clarice, Verissimo, Caio Fernando, Jabor e até do Jô Soares, que os próprios provavelmente nunca escreveram – se escreveram, enganaram. Nutriu uma pequena vontade de que quando não desse mais e tivesse que pisar no chão frio, fosse 1991, 1967 ou até 2010, já estava bom, daria pra fazer uma série de coisas de um jeito diferente.

Olhou para o celular. No fundo, ele sabia. Naquele dia fez três anos. Por onde ela anda? Era meio dia e o aplicativo de troca de mensagens avisou que ela tinha sido vista por último meia hora antes. Pra onde será que ela foi? O pouco dela que sobrou três anos depois vive somente num aplicativo de mensagens instantâneas, num mundo virtual cheio de mensagens falsas de Clarice, Verissimo, Caio Fernando, Jabor e até do Jô Soares. Ela provavelmente deve gostar dessas frases, ele não sabe, não a segue, é melhor assim. Ele quase escreveu uma mensagem, mas diria o quê? Só um “oi” resolveria? Talvez, mas não iria adiante. Se  tivesse pulado da cama e enfrentasse o sol gostoso de inverno talvez a encontrasse por aí. Meia hora antes ela tinha sido vista virtualmente, agora já devia ter caído no mundo. Já devia ter programado o dia, estaria almoçando com outro, combinado um fim de semana com outro, outro que nunca deve realmente ter lido Clarice, Verissimo, Caio Fernando, Jabor e até o Jô Soares. Talvez ele só quisesse mesmo dizer “oi”. Caso a veja, diga por mim. Será que por um segundo ela pensou nele e lembrou que três anos se passaram? Não, provavelmente não. O mundo não é assim, uma comédia romântica surreal, um filme com final feliz. O mundo é de mensagens falsas de Clarice, Verissimo, Caio Fernando, Jabor e até do Jô Soares. Ele queria dizer somente um ”oi”. Acendeu um cigarro.












''O pouco dela que sobrou num aplicativo de mensagens instantâneas'', por Alexandre Petillo em: http://www.casalsemvergonha.com.br/2014/06/05/o-pouco-dela-que-sobrou-num-aplicativo-de-mensagens-instantaneas/


domingo, 1 de junho de 2014

Eu podia


Eu podia, você sabe. Podia falar horrores de você e dizer que você me magoou e dizer que doeu e dizer que ninguém devia acreditar nas coisas que você diz. Eu podia contar daquele jantar de quarta em que você abraçou e jurou e  foi quem eu sempre achei que fosse. Pior, eu podia expor quem você foi quando se esqueceu de tudo e enfiou o dedo na ferida, como se tanta coisa tivesse ficado presa e você precisasse magoar qualquer um, qualquer um, pra doer menos aí dentro. Eu podia dizer como você me tratou como qualquer um.

Eu podia falar mal e apontar os seus defeitos e dizer das mentiras que você conta numa tentativa frustrada de ser logo a pessoa que você queria ser. Eu podia contar daquela vez em que você desviou os olhos e fingiu que não era com você, ainda que você soubesse que era e ainda que soubesse bem da culpa que tinha. Eu podia jogar na cara todas as suas palavras vazias de quem tem muito o que falar – e fala muito – mas no fundo não diz nada além de: eu não tenho ideia do que tô falando. Eu podia falar sobre o tanto que eu apostei em você – e sobre o preço que tô pagando por essa aposta.

Eu podia te contar de como minha mãe ainda pergunta por você e quer sempre saber se você tá bem, se tá com saúde, por que não vem mais aqui em casa. Eu podia revelar que ela sempre me culpa pelo nosso fim, porque é isso o que vocês mais gostam de fazer: achar que quem erra sou sempre eu. Eu podia, realmente, te perdoar por tudo e esquecer qualquer coisa e achar que a gente conseguiria começar tudo de novo. Mas eu sei e você sabe que não é exatamente isso o que você quer.

Eu podia continuar gritando e continuar escrevendo e continuar falando para todo mundo sobre tudo o que aconteceu e me irritando porque você sequer deu a chance da gente tentar consertar. Eu podia continuar mastigando essas dores e remoendo esse passado e me questionando por que a gente acaba magoando e sendo magoado por quem a gente ama. Eu podia espalhar por aí sobre a pessoa horrível que você foi e como todos deveriam se manter afastados.

Eu podia, você sabe. Mas sabe também que o tempo passou e que, com o tempo, um pouco de maturidade é acrescentado à soma. Sabe também que eu não tenho mais saúde, nem tempo, nem disposição, nem energia para ser o menino besta que adorava uma boa briga como eu era até outro dia. Sabe também que eu aprendi algumas coisas ao longo do caminho, inclusive com você.

Por isso, de todas as coisas que eu podia te falar, falo isso: enquanto deu, você foi tudo o que eu achei que era. Enquanto deu, você me aguentou e segurou as pontas e ouviu minhas dúvidas sobre o mundo e o universo e a merda toda que a gente tá fazendo aqui. Enquanto deu, você foi – e de todas as coisas que eu quero lembrar, lembro disso: de todo o amor que você me deu e eu tentei devolver no tempo em que fiquei na sua vida. Porque o resto, o resto é só a vida sendo a vida e os defeitos sendo os nossos defeitos e polos iguais se repelindo. É só isso, sem mais conversas, sem mais reclamações, sem mais nada.

Porque eu podia, te juro, podia. Mas já não posso. Já não dá.