sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ela já foi



Eu a tinha aqui, deitada no sofá enquanto eu fazia o café, reclamando da programação de domingo de manhã na TV. “Por que parece sempre que não passa nada de bom?”. Porque só a gente acordava naquela hora pra ler jornal e andar com o cachorro, meu bem, o resto do mundo tava chegando em casa. E agora eu chego também.
Eu dizia pra ela umas coisas bobas de que precisava ir embora desse mundo e ela me perguntava por que, se o mundo era outro e a gente era abrigo. Eu explicava com um pouco de raiva, um pouco de falta de paciência, que ela não era meu bunker, porque eu sentia que não era, sentia angústia e mesmo que ela apagasse a luz do corredor as coisas não mudariam. Ela deitava quieta do meu lado, e eu só queria sumir um pouco e ficar sozinho. Agora eu tenho todo o espaço do mundo dentro de mim. E a falta consome.
Eu tentava esconder o tédio que batia quando ela queria assistir “Chicago” de novo e cantarolava a cada dois segundos, sempre caía no sono e nunca via o filme inteiro. Trocava a vista dela pelo celular nos jantares, a companhia dela por qualquer pessoa durante os dias de semana em que tinha tempo livre. Até no dia em que eu troquei o lado dela da cama e quem deitou não me perguntou meu lado preferido. Vesti a roupa e fui embora pra casa. E agora não durmo mais assistindo “Chicago” e sei todas as músicas de cor.
Eu a tinha.
Agora eu sou o cara-que-não-tem-mais. O cara que podia ter ido pra casa e rido dela deitando no meu lado da cama e podia também ter esquecido de fechar a porta pra deixar o cachorro pular nela. Podia ser o cara que sai correndo no meio do banho pra ligar o interruptor porque tomou um susto com a água gelada e com ela se encolhendo toda no canto do box. Podia ser o cara que aproveitou a falta de luz pra ser pego de surpresa com um China In Box à luz de velas e podia ter sido o cara que fingiu que não viu as caixas de yakisoba na área de limpeza. Podia ser o cara que canta All That Jazz, mas preferiu ser o Mr. Cellophane que canta sozinho e olha pro lado procurando cumplicidade pra rir da cena engraçada, mas só encontra o cachorro, que também sente a falta dela. É impressionante como ele também sente que só eu não basto, que falta alguma coisa, que sem ela eu não tenho sido suficiente só pra mim.
Eu dizia. Mas dizia o que não importava, dizia um monte de bobagem e nem ria, dizia que hoje não ia dar pra ir com ela no cinema porque tava com preguiça. E passei a não acordar mais cedo nos domingos e nunca mais fiz café pra ela. Passei a achar mais ainda que ela não fosse meu bunker e uma hora dessas ela acreditou, acreditou que a gente não era mais abrigo.
Agora eu sou o cara que podia ter tido tudo, mas não tem. E ela é a garota que eu sonhei desde que era pequenininho e também é a garota que não acredita em mais nada do que eu digo, nem quando eu deixo um bilhete dizendo que decorei as falas do seu filme preferido porque é tudo o que eu tenho feito, eu tenho preenchido a falta dela com as partes dela que eu ainda posso ter.
E eu? Eu sou o cara que abriu a porta pra ela ir embora. E agora ela já foi.


terça-feira, 7 de abril de 2015

Sobre o amor e o medo

Uma vez você me disse que tava indo embora e que tinha que fugir de mim. Tava tudo bem, eu até entendia a despedida. Mas a fuga? Nunca entendo. Você falava que eu era um desses homens-bomba prestes a explodir alguma coisa dentro de você, prestes a te prender numa emboscada. Se o Molejo tivesse pensando na gente, teria sido amor e também cilada.
Falou debaixo dos Arcos e me empurrou, me mandou pra longe enquanto todo mundo via o circo que era a gente. Só faltaram os aplausos, mas juro que a bateria de escola de samba que era o meu peito deu conta dessa falta. Quantas cores você enxerga comigo? Eu vejo muitas, eu vejo várias, eu vejo você refletindo a chuva e brilhando num prisma multicolorido que muda as coisas. Sinto isso quando deito contigo numa cama apertada no meio do litoral, sinto isso quando você me liga embriagada e me manda sumir, me manda ir embora logo antes que eu destrua tudo, antes que a gente se exploda porque você não pode, você não quer isso agora, tá tudo muito certo pra outra bomba. Então você foge.
Foge e não tem sentido nenhum. Certo? Porque você tá fugindo do que te faz bem. Tá fugindo porque “agora não é hora”, “talvez você esteja enganado”, “e se você for embora, como é que eu fico?”, “você não quer o mesmo que eu” e blá, blá, blá. Você é todo um Hades de vozes semiloucas gritando pra não me querer porque, bem, você já quer. E eu te quero tanto. Quero pra caramba. Quero a ponto de implodir sozinho só pra não deixar nenhum caco meu cortar você.
Sou bomba, sim, confesso. Mas é porque eu quero te fazer botar pra fora tudo aquilo que você cala. Exterminar essa coisa quieta e calma que você guarda, essa coisa comedida de viver a vida (que na verdade é medo). Você fala como se tivesse que se desculpar por tudo e pelo mundo, mas não tem, nunca teve. Não tem que se explicar pra ninguém, não tem que pagar a conta do bar pra deixar ninguém feliz. Você precisa seguir essa porcaria desse teu coração, intuição, sentimento, dor de dente ou como você quiser chamar isso que sente. Segue, você vai ver que aponta pra mim porque o teu norte sou eu. E é por isso que eu venho, que eu chego num cronômetro decisivo, sempre mais perto, torcendo pra você não cortar o fio vermelho. Eu só explodo se você deixar. Explodo e mudo o seu mundo inteiro. Você vai ver.
Sou bomba, meu bem, mas não pra te machucar. Eu faço alguma coisa que reverbera aí dentro que te faz perceber que essa praia é mais bonita de noite, que as luzes da Orla deixam a cidade mais romântica e pronta pra gente andar meio bêbados por aí. Te disse noutra noite que eu sou d’um tipo equivocado, que se desculpa o tempo todo, que veio mesmo é pra fazer estrago. Não foi a maconha ou o álcool, não foi influência do amigo de azul que não parava de falar do bosta do Foucalt, mas foi você. Foi você me afastando e correndo como se batesse a meia noite e o pedido se desfizesse. Mas não esquece o sapatinho de cristal e fica. Se esquece inteira e se lembra de mim amanhã mesmo com dor de cabeça e aspirina.
Já pode parar de fugir de mim, porque isso tudo é medo.
Eu posso até me afastar, ir embora, implodir em outro lugar. Respeito se você não me quiser. Mas.
Nunca tem fuga quando a coisa da qual a gente foge mora dentro da gente.
Tic-tac-tic-tac-tic-tac.